São Paulo, 26 de dezembro de 1979.
Mãe,
Eu fui bom este ano, mãe. Eu acho que fui muito bom. Eu fui solidário
como todos os meus irmãos Betinhos. Fiz greve como todos os Lulas. Quebrei Belo
Horizonte como todos os peões. Voltei pro país que me expulsou como todos os
Juliões. Dei murro em ponta de faca como todos os Marighellas. Cantei as
prostitutas, as mulheres de Atenas e joguei pedra na Geni como todos os Chicos
Buarques. Aspirei cola como todos os pixotes. Fui negro, homossexual, fui
mulher. Fui Herzog, Santo Dias e Lyda Monteiro.
Fui então muito bom este ano, mãe. Aqui está minha carta sapato. Vou
fechar os olhos, vou dormir depressa. Esperando que meia-noite todos entrem
pela minha janela. Me façam chorar de alegria, que eu quero viver!
A bênção,
Henfil
Belo Horizonte, 12 de
agosto de 2014.
Mãe[1],
Tô escrevendo o texto do
espetáculo novo e resolvi escrever uma carta pra você. A peça fala de Brasil.
Brasil república. Acontecimentos políticos marcantes. Hoje cedo tava
pesquisando coisas do Henfil, e me deparei com as cartas que ele escrevia pra
mãe dele na Isto é. Achei bonita a coincidência quis escrever pra você.
Escrevo pra você. Como uma carta
para a mãe que me ajudou desenhar a minha utopia dentro do teatro.
Parece que tô tendo que
reinventar meu jeito de escrever, para que as pessoas queiram parar pra me
ouvir.
A gente sempre acha que tá
fazendo algo novo, que descobriu a roda, quando na verdade tudo é tão velho que
imagino olhares cansados de gente que já viu de muito a tudo olhando pra mim. E
quem tem cinco anos e não viu nada ainda?
Mãe, o que vô diria dos tempos
atuais? O que Drummond escreveria? Mãe me dá a mão? Mãe, o que você acha da
polícia? Mãe, cê me desculpa eu sumir vez em quando?
Sara, o que é que tem de clássico
nisso tudo? Quando John morreu chorava-se por quem? Por ele ou pelo sentimento
de um Belchior que diz que a velhice nos faz voltar ao padrão de nossos
próprios pais? Por que a esquerda envelhece e fica branda e a direita se mantem
nos mesmos moldes imperiais de quem sempre comeu o pão de alguém? Que copo de
cólera enraivece quem pensa demais e enraivece quem não pensa porra nenhuma?
Em Sobre Dinossauros, Galinhas e
Dragões eu clamava por uma “historinha nova”, perguntava “que bandeira eu dou,
que camisa eu visto que refrão eu decoro?”... Eu sei que há historinha nova, eu
sei que bandeira dar e que camisa vestir. Mas por que eu tô tão desamparada, perdida
e sem cojones? Por que me sinto só?
Pai, você me ajuda no dever de
casa?
Henfil escrevia pra mãe nos anos
setenta, do meio para o fim da ditadura. Eu te escrevo dos anos dez do meio
para o fim do capitalismo? Do início pro meio do renascimento de pensamentos
reacionários zumbis? Cambuta de fedapada!
Escrevo-te dos anos dez com muita
saudade.
Te amo.
Marina
Resposta Sara:
No importa si es nuevo o viejo lo que se dice… lo que importa es que
salga de dentro y no sea un ropaje…
tampoco importa volver a ser tus padres si ellos fueron capaces de instalarse
en su tiempo de forma intensa o de seguir siendo honestos hoy con lo que
creen… Tampoco importa que la izquierda (o lo que resta de ella) sea
blanda. Lo que importa es que a veces se
haga algo que le sirva a alguien…
Marina no estás sola... aunque no esté en este proceso contigo
físicamente... lo estoy como lo están tus padres y todos los que dejamos alguna
huella en ti.
Sara
[1] Escrevi,
inspirada nas “Cartas da Mãe”, do Henfil, uma carta para minha mãe, para o meu
pai e outra pra Sara Rojo, minha quase mãe, diretora e parceira do Mayombe. A
Sarita respondeu e acima tem um fragmento da sua resposta. Meus pais
responderão. Tenho certeza que sim.
2 comentários:
Não há um só dia em que a poesia não estabeleça um peso, um penar na vida do poeta. Escrever dói. Há um nó em sua alma e eu posso vê-lo, novelo.
Sou a expatriada mãe, nem sempre gentil dos grilhões que a fazem presa de si.Sou a epístola de sua alforria. Talvez a galinácea que confrontou o dinossauro e foi dizimada pelo dragão. Não sou a mãe. Sou aquela que se oferece para dissipar suas aflições num abraço tão apertado que fará você entender que amigo também é pra essas coisas...
ô cristina... saudade!
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